Jogos Vorazes – por Carlos Melo

Carlos Melo, cientista político e professor do Insper

Carlos Melo, cientista político e professor do Insper

Assisto a um filme com meu filho e penso no Brasil. O cenário não é simples e o maniqueísmo não dá conta dele; a voracidade é o motor de nossa confusão. O artigo procura tatear a complexidade do momento, revelar a voracidade dos atores e os desafios para nos afastarmos do abismo.

Um cenário de crueza e brutalidade: desagregação interna, competição desleal, falseamento da realidade, desfaçatez oportunista e coalizões de circunstância; a inexistência de pontes de diálogo, o extermínio do inimigo. E ainda assim, o marketing delineando os contornos da política; a desfaçatez da iminente derrota. O todos contra todos, de onde restará o indivíduo solitário e culpado por contribuir para a eliminação coletiva. Corrupção, peste, tragédia e desemprego. São os “Jogos Vorazes”, filme que assisto com meu filho, a metáfora do Brasil atual.

Como no cinema, para o fácil entendimento, o enredo é simples, de um reducionismo atroz: o bem contra o mal. Cada um escolhe seu lado, naturalmente, acreditando ser “do bem”. Estaremos mesmo desse lado da cerca? Numa singela polaridade de encomenda, há os “a favor” e “os contra”; “a favor” da presidente ou “a favor” de seu impeachment. Já o diabo é do contra: contra a presidente e/ou contra o impeachment. Não pode ser os dois? Destoar da galera é estar sujeito às garrafadas da arquibancada. O maniqueísmo é a tônica da torcida nacional.

Eduardo Cunha é o vilão e Dilma Rousseff, a princesa — ou Cunha o necessário anjo decaído — déspota instrumental – que enfrenta Dilma, a madrasta megera de ocasião. Depende do gosto. Projeta-se o “golpe” tanto quanto “a revolução bolivariana “em andamento: histeria e intolerância que empesteiam o ar e empastelam o raciocínio. Antes de tudo, o processo é uma grande guerra de comunicação: a estória se impondo à história; a construção de narrativas — que moderno! – no auxílio da mistificação.

Mas, é preciso um pouco de distância para notar a complexidade do todo. Nada é tão singelo e superficial, como nos debates inflamados da rede social. Que Eduardo Cunha não é boa bisca, o mundo sabe e não se desconhece suas intenções. Que Dilma troca pés e mãos, deficitária de governabilidade e credibilidade, é mais que evidente. Que o PT dá show de horror, é gritante. A oposição é indigente e, como se diz, o PMDB é mesmo essa serpente. Há rimas pobres, mas inocentes, aí, não há.

O dado concerto — que a febre da subjetiva indignação não permite tatear — é que o país chegou ao fim de uma linha: um ciclo histórico se esgotou. O pacto que deu luz à transição democrática, manquitola, patina hoje nesse atoleiro. Sim, é de união nacional do que se trata; eis o problema: há carência de quadros e mesmo de moderação para construir o abrigo da transição desses novos tempos; da tempestade perfeita ao seu rescaldo.

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A fome altera humores; potencializada pela gula, desperta irritação e intolerância: é mãe de erros crassos e revela índoles. A voracidade, ah, a voracidade… Por definição, daí é que não virá a moderação. Sobejam exemplos de uma descomunal e tola avidez:

1) No governo, a sempre esperteza de malandro-otário: reduzir os problemas a Eduardo Cunha e negligenciar erros e escândalos, OK. É discutível, mas é estratégia. Todavia, em paralelo, instigar Michel Temer e, simultaneamente, empinar Leonardo Picciani é erro tão primário que até reabilita Aloízio Mercadante. Pensando em constranger o vice e seu PMDB, a presidente deu-lhe a autonomia e a liberdade de movimentos de que carecia. Uma simples carta pôs fim a “DR” que Dilma fazia em público. Como “o rosto do impeachment”, a face de Eduardo Cunha era tudo o que o governo poderia desejar; trocá-la pela de Temer, bem menos estigmatizado, foi um desatino. Os pífios 199 votos — consignados no painel de votação – foram o anticlímax do processo e, de imediato, detonam a debandada. Hoje, talvez, nem sejam 199. Até para a mestre em tiro-no-pé, Dilma Rousseff, é excepcional; constranger Michel Temer foi roleta russa com o tambor repleto de balas.

2) Era esperado que para se salvar, Eduardo Cunha ateasse fogo ao circo – jamais às vestes. No entanto, a ansiedade com o processo na Comissão de Ética e o fantasma de Delcídio Amaral embaralharam seu cálculo normalmente frio. Precipitou-se no timing, descoordenando sua ação do contexto mais geral — a conjuntura econômica e social que degringolará, de verdade, só um pouco mais adiante. A voracidade provocou batalhas sangrentas pela composição da Comissão do Impeachment, antes desnecessárias. E tudo foi parar na justiça. Só poderia. Os apóstolos de Cunha são miséria à parte; sujeitos cuja a “Força” reside em não ter reputação alguma a zelar. Só um juizado para enquadrá-los.

3) Uma janela de oportunidade se abriu e uma parte do PMDB se lançou a ela como quem salta para a fonte da juventude. Ou, menos: como quem encontra no chão uma senha que lhe permite, oportunisticamente, furar a fila. Não é ilegal, mas não é moral. O poder, é verdade, carece de moral, enfim. Mas, quando revela mais do que oculta, deixa flancos. Como mencionei em artigo anterior, Ulysses Guimarães dizia que “a política adora a traição, mas detesta o traidor”.

4) A oposição conta pouco. Em sua maioria, portou-se como o cão que correu atrás do caminhão que parou; cansada e, paralisada, divide-se em grupos de interesses inconciliáveis. O principal deles sucumbe à ideia fixa e mal dissimulada de fazer o tempo voltar à eleição perdida que passou (e o tempo nunca volta). Na dislexia de seus líderes, resiste em compreender e admitir a realidade: o país precisa de acordo e transição. No mais, o PSDB precisará correr para recuperar o lugar na fila.

5) O PT é hoje um sedento do futuro que já não há; capaz de entregar Delcídio e rifar Dilma, num discurso de moral retardada e extemporânea, voltado mais a salvar a máquina eleitoral do partido, em 2016, e recuperar o apetite e a competitividade, em 2018, do que defender seu governo. Mesmo que seja na oposição – e talvez seja melhor na oposição – seu objetivo é recuar ao gueto e recuperar o perdido fio da história. A legenda (e Lula) ainda está com Dilma? Obviamente, a resposta formal é sim. Mas, no bolor dos interesses, o casamento de PT & Dilma pode ser comparado à transa “fértil e profícua” de Dilma e Temer. Há mais dissimulação do que amor.

6) No mais, o resto: a base governista do colapsado presidencialismo de coalizão, formada por famintos atávicos, que se empapuçam do banquete patrimonialista nacional. Adesistas de todo tipo, mais que vorazes, glutões que agem no faro do cheiro de carne queimada que se desprende das chaminés dos cofres públicos. E as militâncias — de direita ou de esquerda – pintando-se para guerra, contando sua história (narrativa) cheia de som e fúria, ignorantes de Shakespeare, significando neste momento algo mais nocivo do que “o nada”, de Macbeth.

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Qualquer que seja o desfecho, é pouco provável que ficará bem. O país sai dividido; furúnculo pustulento para aventureiro tirar o carnegão. A vitória da presidente pode ter efeito contrário à ilusão do armistício pretendido para “até 2018”: superada esta fase, insistir com o “fora Dilma” já será realmente costear o alambrado do golpe (de verdade). Todavia, um ponto precede: Dilma não precisará de outra batalha para perceber que não mais reorganiza o sistema; a desinteligência não cessará e o abismo irá sorrir cada vez de mais perto.

Por sua vez, é tolice imaginar que todo impeachment é passeio de criança, papai e mamãe, num dia de domingo. Com Collor, a rua pendia para um lado só: sua queda até uniu. E, ao final, ninguém ouviu seu mimimi de vítima. Já a natureza de Lula, de Dilma e do PT são outros quinhentos: mesmo enfraquecidos, deitam raízes sociais, ideologias, idiossincrasias e, uma vez na oposição, o ressentimento com “o golpe” e a nostalgia do tempo que passou serão irresistíveis e mobilizadoras — a agenda do eventual Temer será delicadíssima. Na história do Brasil – e do mundo –, o bonapartismo surge de momentos assim.

O gosto de sangue na boca não permite que o lobo pare de morder. Mas, é preciso refletir: para questões complexas, raramente há soluções simples: se a virtude está no meio, o país ressente-se de um centro moderado e moderador, capaz de negociar um novo pacto. E, por isso, tudo fica ainda mais complexo. Não há apenas vazio, mas como que um buraco negro de liderança. Lula, enredado, e FHC, fora da linha de comando, pouco/nada farão nessa direção. Também o tempo deles passou. O tempo sempre passa.

Aécio, Serra, Alckmin, Dilma, Wagner, Marina, Ciro… Esses apresentam indicadores antecedentes pouco animadores. Temer, que da coxia tudo ouvia e enxergava, estava fora do jogo; revelará, agora, qualidades até aqui desconhecidas? Difícil afirmar sim ou não. A crise surpreende só às vezes. Se a sorte o levar para onde se movimenta, terá que provar rapidamente talento e sangue frio surpreendentes para quem encerraria a carreira de modo tão discreto. E é sob tiroteio grosso que será posto a prova; a vida testa sem dó, sem pena.

Jogos vorazes, eis a metáfora. Analogia adequada, mas nem tanto: o país carece dos efeitos especiais de uma grande produção; da criatividade de uma direção competente; de recursos, audiência, técnica e verdadeiro interesse do público. Nos identifica o roteiro raso, o enredo de ficção. No mais, esse sentimento de falta do brilho e da beleza da Jennifer Lawrence que não temos.

Estadão, 11 de dezembro de 2015

“A indiscreta falta de charme da Universidade” – por Roberto Romano

Após ler na íntegra o artigo de Roberto Romano – professor de ética e filosofia da UNICAMP – publicado em 1987, no livro LUX IN TENEBRIS (Luz nas Trevas – livro sobre meditações sobre filosofia e cultura – páginas 87-96), resolvi destacar excertos deste artigo, que na década de 1980 fazia criticas contumazes ao nosso modelo de universidade e o modo de ação e construção da intelectualidade brasileira. Após a análise do artigo,  encontrei  muitas semelhanças com nossa realidade acadêmica – quase três décadas depois. O modelo adotado em nossas universidades públicas – na metodologia e na relação discente-docente está cada vez mais sem fisionomia, empobrecido, pormenorizado e vulgarizado.

Encontramos um culto pelo panfletário, um louvar ao desconhecimento, onde a verdadeira construção de um debate com sabedoria, seriedade e objetivos claros se tornam cada vez mais escassos, sendo por muitos evitado, por interesses imediatistas, ou pelas perspectivas mais obscuras possíveis.

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Roberto Romano

Roberto Romano

[…] Nos recintos acadêmicos brasileiros, sempre que alguém pronuncia a palavra santa, “transformação”, os ouvintes são tomados de um pânico religioso. A ordem – transformar –  deixa de lado, entretanto, pela angústia de vencer o tempo, o “formar” que lhe é essencial. A forma torna-se questão menor desde que alguns conteúdos sejam veiculados, ele pouco importa. Na universidade vivida e pensada assim, não se faz filosofia. Tal nome disfarça uma técnica, ou várias, de manipulação da fala e consciência alheias.

A fragmentação de forma e conteúdo, solidária com a divisão do trabalho espiritual resulta, sempre, na “falta de cultura dos especialistas” para usar o Tom de Nietzsche. Mentes afeitas a operações repetitivas, os especialistas tornam-se insensíveis – são anaístetos, como diriam os gregos – e não percebem as delicadas e multicoloridas teias da vida.

[…] Rapidez, fragmentos, divisão, incultura, grosseria: falta de sensibilidade para o belo e para o verdadeiro, tais são as cicatrizes profundas, na face da universidade “transformada” pelo Estado, pelo populismo, pela mercantilização da alma brasileira. […] Colocamos como padrão do conhecimento sua “utilidade”, militantes progressistas e mantenedores do status quo unem esforços. Triste coincidência dos opostos. […] O conteúdo, separado da forma, é, justamente, o correlato de uma sociedade esfacelada, feia, não verdadeira.

[…] O populismo romântico erige, justamente, esse defeito sem ideal, norma de gosto e vida. Ao invés de lutar para que as formas de pensamento, ação, modos sociais, artes, ciências se refinem, pelo trabalho disciplinado do espírito, as hordas dos parasitas intelectuais, que vivem do “popular”, tudo fazem para banir, na universidade, e se possível, do social, as formas culturais que são patrimônio humano. Desculpa: trata-se de purificar o saber das influências deletérias burguesas.

Numa universidade paulista, um desses doutrinários do “saber popular” irritou-se profundamente, quando colegas referiam-se  a Proust, Balzac, e outros escritores, numa discussão sobre o ensino de … literatura.  “O povo não precisa de espírito, nem de Balzac, nem Proust. Precisa é de feijão!”. Foi delirantemente aplaudido por meio auditório de imbecis, responsáveis pela formação de jovens estudantes. Foi explicado ao demagogo, com muita paciência, que é exatamente isto o feito hoje com o proletariado, cujo movimento máximo permitido, em termos somáticos, é o de conduzir  mão para a boca. Nada mais. E que sua fala “revolucionária” só piorava a dominação burguesa habitual. Alguém lembrou Sartre: não foi exatamente o número de sacos de batata introduzidos na França, antes de 1789, que decidiu a revolução francesa…

A vida encerrada nos limites da militância é rápida, descompromissada com o belo, o verdadeiro. Justamente por isto, ajuda a impedir qualquer transformação. Muitos progressistas imaginam até que modernizar e revolucionar uma sociedade tem o mesmo significado. Ora, existem instituições bastante modernas, como o Estado e a Igreja, mas demasiado conservadoras. […] A reflexão sobre a forma pode esclarecer o quid pro quo semelhantes a esteentre progressismo e modernidadecujos resultados foram danosos, sobretudo para os dominados.

O lugar comum mais expandido, na Universidade de hoje, é a ideia de uma “consciência crítica”.Tudo é crítico, evidentemente. O aluno do primeiro ano precisa demonstrar a posse de tal qualidade, ou está perdido. A crítica se exerceria antes do conhecimento basilar do campo discutido. Kant levou décadas e décadas estudando a físico-matemática de Newton, a filosofia de Hume, refutando em silêncio Leibniz ou Wolff. Só depois disso escreveu a Crítica da Razão Pura. Marx passou tempo semelhante no Museu Britânico, estudando Ricardo, Adam Smith, Hegel. Aí redigiu a Crítica da Economia Política. A epistemologia engraçada, assumida pelos estultos mestres populistas, por medo ou conivência face aos alunos, diz que a verdade não se encontra nos livros ou laboratórios, mas na vida. Dessa mentira piedosa os estudantes só se darão conta, após a queda na existência efetiva da empresa, das igrejas, dos partidos. Ali, quem não sabe é conduzido. Recebe ordens, aguilhões como diz Canetti.

[…] A filosofia não se limita a vivência. […] Com tantas cabeças “críticas” militantes, é estranho, no mínimo, que tudo continue estável nas ligações curriculares entre universidades e instituições centrais da República. Poucos se interrogam sobre a relação existente entre diploma, competência, requisitos disciplinares. Desde o princípio, parcas são as interrogações sobre as próprias “especilidades”. […] A imaginação se estiola nesta subcultura universitária e militante, perfeitamente hospedada pelas malhas da grade curricular. Ambas barbárie populista e rede dos cursos burocraticamente determinados, colaboram para o assassinato das almas universitárias, pouquíssimas, que ainda insistem em desabrochar para o diálogo internacional do espírito. Não surpreendente, pois, que as monografias terminais dos cursos sejam provincianas e calamitosas. Nelas amontoam-se lugares comuns sem a mínima invenção e inteligência. Triste ladainha do Mesmo.

Sem graça, verdade ou beleza, não espanta, também, que os cursos de graduação e pós-graduação sejam cada vez mais pobres, enfadonhos. Os populistas acadêmicos, hoje, são impotentes para perceber até o que fazem da universidade. Como dela desacreditam, possuem extrema flexibilidade, prestando-se prazerosamente ao serviço de caluniá-la. Os mesmos que um dia a denunciam como “inútil porque burguesa”, no momento seguinte aceitam assumir compromissos com autoridades – laicas ou religiosas – cujo único alvo é domar seu ímpeto. Aí, os parasitas do populismo mostram sua face burocrática: sentam-se nas pretensiosas comissões de “alto-nível” e passam a tonitroar medidas punitivas, dirigindo-as aos colegas mais livres e cultos, ou menos espertos. Tais carreiras, dos servos espirituais, são rápidas: mestres na adulação dos poderosos, e na auto-propaganda indulgente face á massa, utilizam tal técnica infalível, poupando, assim, o tempo. Desse modo, irritam-se contra seus pares que se atrasam, detendo-se em tolices superadas, como a verdade, a ética profissional, o orgulho, o direito de errar no vagaroso processo de pesquisa.

[…] Para isto, torna-se preciso colocar nas mãos  e olhos dos estudantes, não mais compêndios só utilizáveis para o enrijecimento de sua alma, mas textos de filósofos que ensinem o valor da vida e da beleza, estas coisas tão inúteis para os poderosos de sempre. (caminhando na busca da síntese das sensações).

[…] Sabemos agora porque a universidade é tingida de preto e  branco, pelo maniqueísmo, ou cobre-se com o pó mortal das Quartas-feiras especulativas. Dela foram banidos os matizes, a suave coloração das vogais, a música da Gaia Scienza. Em seus recintos, predomina a pressa no alinhamento. Ali, os ouvidos são violentados pelo passo de ganso – movendo-se pelo ritmo rápido e surdo das consoantes – e temem o grito de guerra contra a vida. Nas disciplinas, ensina-se o pavor pela beleza, resultando o ódio pelo raciocínio elegante. Tudo isto sufoca  o pesar e torna quase impossível o conhecimento. Impera, soberana, a metafísica dos “pobres”, presa ao empírico mascarado de “concreto”; o “útil”, o “comunitário”, o vulgar. No mais profundo esquecimento do ser, define-se a miséria máxima da ação e da palavra. […] Restam apenas os corvos acadêmicos, com seu coro “crítico”: “uni-verso, uni-versitas”. Filosofia? Never More…